CRP-12 apoia nota de repúdio sobre a reabertura do HTCP
RETROCESSO NO ESTADO DE SANTA CATARINA: O HCTP E A RESOLUÇÃO N. 487 DO CNJ
As organizações, entidades e indivíduos abaixo assinados vêm, por meio deste, apresentar sua posição crítica à reabertura para novos pacientes ingressantes no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) de Florianópolis. Os motivos desta manifestação estão organizados nas seguintes considerações:
1) Em novembro de 2023, a Vara de Execuções Penais (VEP) da Capital publicou a Portaria n. 08/2023 interditando parcialmente o HCTP para proibir novas entradas, bem como para regular a desinternação dos pacientes atuais com vistas ao seu fechamento definitivo até agosto de 2024. A referida portaria, motivada pela Resolução n. 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tinha como objetivo fazer cumprir a Lei de Reforma Psiquiátrica (Lei n. 10.216/2001), que instituiu um processo gradual de desmanicomialização na política de saúde mental no Brasil, bem como estabeleceu os direitos da pessoa com transtornos mentais.
2) O Ministério Público Estadual (MPSC) impetrou um Mandado de Segurança para cassar a referida portaria, alegando inconstitucionalidade material da Resolução n. 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que deu suporte à determinação da VEP. A Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu, dada a alegação, suscitar incidente de arguição de inconstitucionalidade, encaminhando a matéria ao Órgão Especial. Em 11 de julho de 2024, o Desembargador Relator concedeu medida liminar “para determinar que os hospitais destinados ao cumprimento das medidas de segurança e cautelares de internação, no âmbito do Estado de Santa Catarina, permaneçam em funcionamento, ao menos até o julgamento definitivo do incidente de arguição de inconstitucionalidade”. Após a decisão, a diretora do HCTP informou, em matéria publicada pelo NSC Total, que o local “voltará a prestar atendimento normalmente a partir desta sexta-feira (12) e, também, a receber novos internos”1.
1: “Decisão de fechamento de hospital de custódia de SC é revertida após liminar.”
Disponível em: <https://www.nsctotal.com.br/noticias/decisao-de-fechamento-de-hospital-de-custodia-de-sc-erevertida-apos-liminar>
3) A Resolução n. 487/2023 do CNJ foi elaborada para dar cumprimento a Lei nº10.216/2001 que estava sendo ignorada pela maior parte do Judiciário brasileiro no que tange à saúde do louco infrator, instituindo-se prisão perpétua, muitas vezes em condições desumanas e degradantes e, assim, ferindo a Constituição Federal de 1988. As administrações dos estados, cúmplices do descumprimento da Lei, também deixaram de criar e organizar uma rede de atendimento que atendesse de maneira digna às necessidades de atendimento dos pacientes e suas famílias ao longo desses 23 anos.
4) Tanto a Lei n. 10.216/2001 quanto a Resolução n. 487/2023 do CNJ são o resultado de décadas de trabalho e debates por parte de grupos interdisciplinares e usuários que denunciaram as péssimas condições de tratamentos de pessoas internadas em instituições manicomiais, com as evidências, ainda, de que a privação da liberdade não proporciona tratamento, melhora nas condições de vida ou garantia da dignidade do paciente e de seus familiares. Pelo contrário, a internação agrava as condições de usuários e de seus conviventes.
5) O objetivo da Resolução n. 487/2023 do CNJ é o de assegurar os direitos das pessoas com transtornos mentais de serem tratadas pelas políticas de saúde coletiva, estruturadas através da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Dessa forma, o CNJ buscou adequar a realidade brasileira à Constituição Federal, à Lei n. 10.216/2001, às convenções internacionais de que o Brasil é signatário e à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, responsável por condenar internacionalmente o Brasil no Caso Ximenes Lopes.
6) No início de julho de 2024, uma audiência pública foi realizada na Assembleia Legislativa do estado de Santa Catarina, onde as entidades que representam as profissões mais envolvidas na atenção psicossocial, a saber, os conselhos estaduais de psicologia e de serviço social, manifestaram-se pela urgência na implementação da Resolução n. 487 e no fortalecimento da rede de atenção psicossocial, para proporcionar um cuidado digno aos pacientes desinstitucionalizados, bem como às suas famílias.
7) Por outro lado, na ocasião, continuaram sendo levantados argumentos que ainda apelam para a noção de “periculosidade” para lidar com uma problemática que é de saúde e como tal deve ser articulada.
A “periculosidade” a que se faz referência não tem como ser atestada, pois carece de qualquer base científica.
8) Os argumentos que têm sido levantados para a suspensão da interdição parcial não procedem, primeiro, porque a Lei que sustenta a Resolução n. 487/2023 do CNJ é de 2001, e os estados estão buscando formas de não a cumprirem, afirmando que há falta de estrutura. Contudo, os estados de Minas Gerais e de Goiás, por exemplo, conseguiram já há muitos anos fechar os manicômios judiciários e hospitais de custódia. A letargia demonstra verdadeira omissão e negligência dos sucessivos governos do Estado de Santa Catarina, dos municípios e do judiciário, que passados mais de 20 anos não foram capazes de estruturar uma política pública que pudesse conferir efetividade aos direitos reconhecidos de uma parcela da população extremamente vulnerabilizada e esquecida pela sociedade.
9) Entendemos, ainda, que o TJSC, ao conceder a medida liminar em parte “para determinar que os hospitais destinados ao cumprimento das medidas de segurança e cautelares de internação, no âmbito do Estado de Santa Catarina, permaneçam em funcionamento, ao menos até o julgamento definitivo do incidente de arguição de inconstitucionalidade”, não há a revogação expressa da Portaria n. 08/2023 da VEP, que, portanto, segue vigente. Assim, o ingresso de novos pacientes está contrariando tanto a portaria quanto a decisão do TJSC, além de violar diretamente os preceitos convencionais, constitucionais e infraconstitucionais da legislação brasileira.
10) Os casos excepcionais, nos quais as famílias não têm condições de darem abrigo a pessoas com graves transtornos mentais, que, segundo a própria diretora da instituição, claramente constituem a minoria dos pacientes do HCTP, não devem ser tratados como se fossem a regra. Da mesma maneira, a narrativa de que os custodiados no HCTP oferecem risco social também não se sustenta quando se observa que a maior parte deles não cometeu fato definido como crime praticado com violência. Assim, são necessários esforços por parte do estado e dos municípios para estruturação e fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), bem como a criação de SRTs (Serviços Residenciais Terapêuticos). A reabertura do HCTP nos termos em que está sendo realizada pelo Poder Judiciário implicará em retrocesso em relação ao trabalho já realizado desde o ano passado para cumprir a Resolução, além de desrespeitar uma história de defesa e valorização de um modelo humanizador.
11) Sabendo-se que a desinternação já estava ocorrendo e, em razão disso, já havia uma demanda sólida para a construção de um sistema integral de atendimento à saúde, a decisão atual é um retrocesso, que poderá atrasar por muitos anos o fim deste doloroso e desrespeitoso tratamento conferido ao louco infrator no Brasil.
12) Os recursos que atualmente sustentam o funcionamento do HCTP devem ser realocados para políticas de manutenção e fortalecimento da RAPS e dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Isso permitirá que pessoas com transtorno mental em conflito com a lei recebam tratamento especializado e individualizado, com o devido respeito à sua dignidade humana, além de servir como suporte para a estruturação necessária desses serviços para atender a essa demanda.
13) A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) necessitam de maior atenção do poder público para sua estruturação, dada a fragilidade de recursos e a insuficiência de pessoal. Além disso, o estado de Santa Catarina carece da criação e fortalecimento dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) e Unidades de Acolhimento (UA). Esses serviços lidam com um público extremamente vulnerabilizado, ao qual agora se somam pessoas com transtornos mentais e em conflito com a lei, e precisam de investimentos contínuos para garantir atendimento adequado e humanizado. A falta de recursos compromete a qualidade dos serviços oferecidos e a capacidade de responder às necessidades dessa população, evidenciando a urgência de políticas públicas que fortaleçam e ampliem a infraestrutura e o quadro de servidores públicos dedicado a esses centros.
Desse modo, repudiamos e denunciamos a retomada da entrada de novos pacientes no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) de Florianópolis, bem como a letargia do poder público catarinense em estruturar políticas públicas antimanicomiais, que deveriam fortalecer RAPS e CAPS, para o atendimento das pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei. Reivindicamos a retomada da interdição parcial e que esta decisão seja reformada, estabelecendo um prazo determinado para que o poder público cumpra a lei e estruture adequadamente os serviços da rede de atenção à saúde mental para o tratamento deste público.
Por uma sociedade sem manicômios! Reforma Psiquiátrica já!
Florianópolis, 17/07/2024.
● Instituto de Memória e Direitos Humanos – IMDH/UFSC
● Escola de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina
● Residência Multiprofissional em Saúde da Família (REMULTISF) da Universidade Federal de Santa Catarina
● Colegiado de Apoiadores da Rede de Saúde Mental de SC
● Ouvidoria-Geral Externa da Defensoria Pública de Santa Catarina
● Grupo de Pesquisa e Extensão Poder, Controle e Dano Social da Universidade Federal de Santa Catarina (PCDS-UFSC)
● Brigadas Populares
● UNEGRO- União de Negras e Negros Pela Igualdade de Santa Catarina.
● Coletiva Yabás Palhoça SC.
● Fórum Nacional de Mulheres no hip hop2 SC
● Fórum Nacional de Mulheres Negras SC.
● Serviço de Assessoria Jurídica Universitária Popular – Universidade Federal de Santa Catarina (SAJU-UFSC)
● Grupo de Criminologia Crítica Vera Andrade da Universidade Federal de Santa Catarina (GCCrit-UFSC)
● Programa de Educação Tutorial do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PET-Direito-UFSC)
● Observatório de Comunidades e Periferias de Santa Catarina (OcupaSC)
● 27ª Defensoria Pública da Capital – Execução Penal
● Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares em Santa Catarina (RENAP-SC)
● Mandato do Dep. Marquito (PSOL-SC), Coordenador da Frente Parlamentar da Saúde Mental
● Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS)
● Ruptura – Organização da Sociedade Civil● Coletivo Testemunho e Ação / Sigmund Freud Associação Psicanalítica
● Projeto de Extensão “Sistema Prisional” do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
● NUPEBISC – Núcleo de Pesquisa e Extensão em Bioética e Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina
● Instituto SIG – Psicanálise & Política
● Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina — 12ª Região (CRP-12)
Outras organizações, instituições, grupos, coletivos que desejem subscrever a nota, pedimos que enviem um e-mail para podercontroledano@gmail.com.