CRP-12 emite Nota sobre Audiência Pública realizada na Câmara de Vereadores de Joinville acerca de Internação Involuntária

CRP-12 emite Nota sobre Audiência Pública realizada na Câmara de Vereadores de Joinville acerca de Internação Involuntária

O Conselho Regional de Psicologia emitiu uma Nota sobre Audiência Pública – Internação Involuntária na Câmara de Vereadores de Joinville, realizada no dia 27 de março de 2025 e enviada como ofício ao presidente da Câmara Municipal de Joinville, senhor Diego Machado.

 

Of. nº 35-2025/DIR-CRP-12

Florianópolis, 15 de abril de 2025.

Ao Presidente da Câmara Municipal de Joinville, senhor Diego Machado (diego.machado@cvj.sc.gov.br )

Av. Hermann August Lepper, n.º 1100, Bairro Saguaçu, Joinville-SC, CEP 89221-005

 

Assunto: Nota acerca da Audiência Pública datada de 27 de março de 2025.

 

Senhor Presidente,

O Conselho Regional de Psicologia – 12ª Região (CRP-12) é uma autarquia federal de direito público, instituída pela Lei Nº 5.766/71 e regulamentada pelo Decreto Nº 79.822/77, tendo por finalidade orientar, fiscalizar e disciplinar a profissão de psicóloga(o), bem como zelar pela fiel observância dos princípios éticos e contribuir para o desenvolvimento da Psicologia enquanto ciência e profissão.

 

I – Sobre a Audiência Pública realizada no dia 27/03/25.

 

Chegou ao nosso conhecimento que estudantes do Curso de Psicologia da Faculdade IELUSC estiveram presentes em uma Audiência Pública realizada na Câmara de Vereadores do Município de Joinville, no dia 27 de março de 2025. E que a participação cidadã dos estudantes na referida audiência tem sido depreciada por representantes políticos de forma jocosa e desrespeitosa, além de incitar o ódio contra o corpo docente dessa respeitosa instituição.

 

Chama a atenção que o teor da matéria – a internação involuntária da população em situação de rua como Política de Saúde Mental – desvirtua-se do seu propósito original, na medida em que se volta à difamação de um corpo docente e estudantes de psicologia sobre a alegação de serem “doutrinadores” e “doutrinados.”

 

Esta postura agressiva e violenta, tomada por alguns mandatários, é, no mínimo, incoerente, já que os mesmos desconhecem as legislações concernentes à formação de psicologia e da prática profissional. Além disso, essas condutas, infelizmente, não estão sopesando as consequências nocivas e os efeitos psicossociais que esta exposição desnecessária nas redes sociais pode produzir nas pessoas.

 

Cabe destacar, que o próprio CRP-12 se fez representar na referida Audiência Pública, problematizando com as pessoas presentes e sociedade joinvilense, sobre as argumentações em torno da “ajuda aos necessitados” que têm sido proferidas nesses espaços. Essa argumentação precisa ser problematizada pois é evidente que o protagonismo da População em Situação de Rua está sendo, até este momento, ignorado, considerando que as instâncias representativas dessa população (como por exemplo, o Movimento Social da População em Situação de Rua de Santa Catarina) sequer foram chamadas para estarem presentes nos espaços de decisões sobre suas próprias vidas e trajetórias. Ao contrário, os convidados presentes, com franco desconhecimento da complexidade do assunto, protagonizaram falas de ordem moral e preconceituosa contra a população que se encontra em situações de vulnerabilidade social.

 

Por fim, é indispensável ressaltar que audiências públicas são espaços em que ocorrerão frequentemente debates acalorados, com posicionamentos antagônicos entre os participantes, em verdadeira demonstração do exercício da democracia direta. Assim, deveriam as autoridades públicas compreenderem esse contexto de disputa argumentativa ao invés reproduzirem falas agressivas e desrespeitosas em redes sociais.

 

 

II – Sobre o Histórico da Luta Antimanicomial Articulado a Política de Saúde Mental e Práticas Psicológicas para a População em Situação de Rua

 

Os materiais orientativos à categoria profissional da Psicologia, como se pode constatar nas produções do Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), tal como as Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em políticas públicas de álcool e outras drogas e as Referências técnicas para atuação de psicólogas (os) no CAPS — Centro de Atenção Psicossocial, demonstram a complexidade que envolve o uso de álcool e outras drogas, e os dispositivos de Saúde Mental para o enfrentamento destas questões.

 

Ressalta-se que a questão do uso nocivo de drogas não está restrita à População em Situação de Rua, como os projetos de leis podem dar a compreender, produzindo na população pânico moral. Narrativas muito conhecidas na história da psicologia, da luta antimanicomial e antirracista brasileira estão presentes nas argumentações de parlamentares e sociedade em geral.

 

Em nome “do bem e da ajuda”, revestidas de um caráter de “humanização”, reiteram políticas higienistas, elitistas, que percebem os corpos nomeados como “improdutivos”, fora do regime estabelecido pelo capitalismo e neoliberalismo, como subjetividades que precisam ser corrigidas, adaptadas, de modo que voltem a uma suposta normalidade produzida por este mesmo regime discursivo. Isso demonstra o quanto ainda necessitamos produzir estratégias de enfrentamento às políticas extremistas que estão presentes nos espaços de debate público e que produzem, sobretudo, modos de subjetivação, modos de regulação da vida.

 

Nota-se um processo de individualização e normatização no sujeito, ignorando-se as problemáticas de ordem social, tal como a desigualdade, o neoliberalismo, a pobreza e a miséria, as opressões higienistas e racistas, entre outras tantas formas de violências que há muito a psicologia brasileira vem problematizando. Ressaltamos as Políticas Públicas de Saúde Mental e de Assistência Social já existentes para o cuidado e acolhimento destas problemáticas complexas.

 

Sobre a Política Pública de cuidado às pessoas que fazem uso nocivo de drogas, é fundamental que os gestores públicos lutem pela ampliação de investimentos em políticas públicas de Saúde e Assistência Social, com trabalho em rede, no território, em liberdade, desinstitucionalizado e a partir de projetos terapêuticos singulares (SUS) e Projetos Individuais de Atendimentos (SUAS), entre outros.

 

Ademais, há necessidades de intervenções intersetoriais e planos de ação específicos que garantam os direitos e a inclusão social conforme recentes determinações do Supremo Tribunal Federal – na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, que determina que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios observem as diretrizes do Decreto Federal 7.053/2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua.

 

Nessa direção, as Políticas Municipais, Estaduais e Federais deveriam apostar em estratégias mais ampliadas de garantia de direitos mínimos, pois, a ausência de Políticas Públicas efetivas tendem a aumentar o número de pessoas em situação de rua e em situação de vulnerabilidade social.

 

A resposta que o Estado deveria oferecer seria a compreensão da integralidade que envolve a situação de rua, o uso de álcool e outras drogas, os sofrimentos psíquicos severos e persistentes e a ampliação das políticas de cuidado e enfrentamento à realidade desigual. Frisa-se que já temos diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental, construída a partir da Reforma Psiquiátrica, há mais de 20 anos, com êxito em diversos municípios brasileiros.

 

O foco prioritário desta reforma foi a construção de rede substitutiva aos hospitais psiquiátricos e/ou espaços de internação e isolamento social e na luta antimanicomial. Tal como preconiza a Lei nº 10.216, 06 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial à saúde mental. A referida lei, já considera casos de internação involuntária – que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro, avaliando-se a complexidade da situação, em equipe multiprofissional, não apenas centralizado na figura do médico. A internação serve aos casos agudos, pontualmente, e não como dispositivo de segregação social.

 

A promoção da saúde mental, a construção da autonomia e protagonismo dos sujeitos não poderá ocorrer em ambientes que restringem a liberdade. Não há como trabalhar a autonomia sem exercitá-la. Enfrentar a dependência de substâncias psicoativas exige inevitavelmente o exercício da autonomia, o que não será profícuo em espaços onde os métodos predominantes são punitivos e coercitivos, porque eles não permitem a expressão da subjetividade.

 

Vivemos por anos uma longa e vitoriosa luta pelo fim dos manicômios. Contudo, o incentivo às práticas, como as de internação involuntária e compulsória, representa um retrocesso a todo histórico da luta antimanicomial da qual a Psicologia historicamente participa ativamente. O enfrentamento à questão social da População em Situação de Rua passa pela reflexão sobre as práticas de cuidado que têm sido ofertadas. É necessário o efetivo comprometimento de profissionais, gestores públicos e sociedade no fortalecimento de políticas públicas de cuidado em liberdade.

 

Neste sentido, enfatizamos que o reduzido investimento, por parte das gestões Federativas, Estaduais e Municipais, na ampliação das Redes de Atenção Psicossocial (RAPs), tem produzido uma cobertura insuficiente às problemáticas aqui citadas, sobretudo aquelas relacionadas aos problemas de desigualdades sociais alarmantes no país. Tais práticas violam os Direitos Humanos, ferem e fragilizam políticas públicas e normas legais e técnicas nacionalmente estabelecidas que estipulam os cuidados a este público, a exemplo da Política Nacional para a População em Situação de Rua.

 

Destacamos a Resolução nº 08, de 14 de agosto de 2019, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, que Dispõe sobre soluções preventivas de violação e garantidoras de direitos aos portadores de transtornos mentais e usuários problemáticos de álcool e outras drogas. Nesta normativa, é explícito que a internação deve ser o último recurso de cuidado a ser preconizado, sendo proibida a sua realização em instituições asilares de longa permanência, caracterizando como violação de direito.

 

A internação involuntária e compulsória como política municipal decreta o fracasso da rede intersetorial para a reabilitação destes sujeitos, como escolha política. Destaca-se que a internação é um direito dos usuários, quando necessário, mas deve ocorrer com critérios técnicos, avaliados por profissionais qualificados, deve ocorrer em ambiente hospitalar (hospital geral). No entanto, propô-la indiscriminadamente, sem a devida avaliação técnica, descolada da articulação com a rede de atendimento em saúde, assistência social e demais políticas públicas, nada mais é que um subterfúgio para validar práticas higienistas e discriminatórias.

 

Em relação à assistência social, a quantidade de abrigos é historicamente insuficiente e poucos conseguem dar suporte aos que buscam abrigamento de forma voluntária. Além de necessitar urgentemente qualificar e dignificar o tratamento dado às pessoas que necessitam destes equipamentos. Sem trabalhar e acolher os sujeitos e toda a complexidade relacionada à situação de rua, qualquer proposta pontual e restritiva de liberdade tende a se tornar inócua, agressiva e violadora de direitos.

 

Convidamos a conhecerem a nota de Posicionamento Contrária aos Projetos de Leis sobre Internação Involuntária produzida pelo CRP-12 em Fevereiro de 2024. https://site.crpsc.org.br/crp-12-manifesta-sobre-pl-de-internacoes-involuntarias-e-compulsorias/. Desde então, vimos acompanhando o crescimento dessas proposições que remontam a políticas higienistas datadas do século XIX e XX. Políticas estas, sustentadas pela ideologia urbanista de modernização e limpeza das cidades, que, em igual tempo, localizam nas populações que vivenciam a pobreza e a miséria o lócus da anormalidade e da periculosidade.

 

Não raro, entre as argumentações presentes nestas audiências está a ideia de que as pessoas em situação de rua são potencialmente perigosas e/ou doentes. A problemática dessa lógica, é que isso impele às pessoas, que estão em situação de vulnerabilidade social, o pressuposto da patologização e da criminalização da pobreza. Portanto, a psicologia brasileira se afasta eticamente destas racionalidades nefastas.

 

Estas são reflexões importantes que devem fazer parte da prática em Saúde Mental, sobretudo na formação de um estudante de psicologia, que passa por se manter atento às políticas de ordem municipal, estadual e federal no que tange aos direitos fundamentais básicos.

 

 

III – Sobre a Formação de Psicologia alicerçadas em Princípios Éticos da Profissão.

 

Imbuída da atribuição jurídico e legal que compete a esta instituição, fazem parte das ações da autarquia articular-se junto com as Instituições de Ensino Superior (IEs), que ofertam cursos de Psicologia no Estado, para que as formações sejam realizadas dentro dos pressupostos éticos e políticos que a profissão de psicóloga(o) exige, observando as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de Psicologia, consubstanciada na Resolução CNE/CES nº 01/2023 do Ministério da Educação, e no próprio Código de Ética Profissional do Psicólogo.

 

O artigo 2º da supracitada Resolução CNE/CES nº 01/2023, por exemplo, estabelece como valores para a formação dos profissionais:

 

III – Compreensão crítica dos fenômenos históricos, sociais, econômicos, culturais e políticos de um mundo em processo crescente de globalização, considerando a diversidade regional do país, sua inserção na América Latina e na comunidade de países de língua portuguesa;

 

IV – Compromisso com a construção de uma sociedade democrática, soberana e socialmente justa, tendo em vista a promoção da cidadania, da saúde, da dignidade humana e da qualidade de vida de indivíduos, grupos, organizações e comunidades;

 

Já o Código de Ética Profissional traz, como princípios fundantes da Psicologia, por exemplo:

 

O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

 

O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

Logo, torna-se inegável que os alicerces da Psicologia estão calcados no pensamento crítico no processo de formação de estudantes, justamente para a consolidação de direitos fundamentais como um pressuposto de Saúde das individualidades e coletividades, fomentando, assim, o respeito e a promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, a partir dos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

 

Uma atuação com responsabilidade social, que considera e analisa crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural e, bem como, considera as relações de poder nos contextos de atuação e os impactos dessas relações sobre as suas atividades profissionais, posicionando-se de forma crítica.

 

Portanto, formar estudantes na direção dos preceitos éticos da profissão, embasados na ciência psicológica, é tarefa que exige muita seriedade e compromisso do corpo docente com as demandas oriundas da sociedade, como é o caso do debate que vem ocorrendo em diversos Estados e Municípios sobre a internação involuntária da População em Situação de Rua.

 

Compreendemos que um curso de Psicologia comprometido com essas diretrizes da Ciência e Profissão, deve fomentar espaços de pensamento crítico, dialógicos, emancipatórios e o exercício da cidadania, como por exemplo, a participação de Psicólogas(os) e estudantes nos espaços de Controle Social, sobretudo em pautas de tamanha relevância social como é o caso da “internação involuntária e/ou compulsória”.

 

IV – Repúdio

 

Repudiamos todo e qualquer Projeto de Lei que proponha internação involuntária e compulsória para a população em situação de rua e reiteramos o compromisso ético-político da psicologia pela garantia dos direitos. Somamos aos demais órgãos, categorias profissionais e movimentos sociais para o enfrentamento às lógicas manicomiais que ainda persistem no momento contemporâneo.

 

Repudiamos toda e qualquer forma de exposição do Corpo Docente e dos Estudantes do Curso de Psicologia às práticas de ódios e de ordem discriminatória, de modo a tentar interferir em processos educacionais sustentados pelos princípios da Ética Profissional. Relembramos a necessária Liberdade de Ensino, prevista no artigo 206, inciso II, da Constituição Federal de 1988.

 

V – Solidariedade e Providências

 

Solidarizamo-nos com o Corpo Docente e com os Estudantes do Curso de Psicologia da Faculdade Ielusc que, infelizmente, foram objetos das narrativas de ódio e preconceitos por parte de representantes públicos. Representantes estes, que deveriam ser os primeiros a defenderem os valores democráticos e o pleno exercício da cidadania.

 

Cabe, ainda, reconhecer os possíveis efeitos psicossociais que tamanha exposição pode produzir nos professores e estudantes. Dessa forma, recomendamos que a Instituição de Ensino manifeste apoio e acolhimento ao seu corpo docente e aos seus estudantes pela situação vexatória a que foram expostos pelos representantes públicos.

 

Exigimos que a Câmara de Vereadores tome providências em relação a todos os aspectos levantados na nota.

 

 

Atenciosamente,

Yara Maria Moreira de Faria Hornke

Conselheira Presidente do CRP-12

CRP-12/08685

Leia a Nota na íntegra clicando aqui

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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